sexta-feira, 30 de março de 2007

Minha região está enfrentando um surto de dengue.

A gente tem visto inúmeras campanhas de conscientização, operações-arrastão, folhetos explicativos, palestras em escolas.

Mas eu acho muito esquisito o que acontece quando você chega a um hospital ou pronto-socorro passando mal e apresentando dois ou mais sintomas da doença e dizendo que mora na área de risco.


Aqui em casa, o Memo e o Gabriel passaram muito mal recentemente (espaço de 1 mês entre um e outro). Sintomas idênticos: dor de cabeça infernal (Memo, que vive dizendo que é herói e não sente dor, chorou), febre implacável, dor nos olhos, dor no corpo, vômitos. Acompanhei os dois, assustada, ao pronto-socorro. Das duas vezes, a mesma conduta médica: um exame superficial de ouvido, nariz e garganta, o diagnóstico de "virose", a prescrição de um antitérmico e de antiespasmódicos para controlar os vômitos e cólicas. E acredito que tenha sido mesmo um dos marditos rotavírus quem passou por aqui, porque dias depois vieram as diarréias e depois ficou tudo bem.

O que me causa estranheza é que, segundo as informações que recebemos, muitos sintomas da dengue podem ser confundidos com gripes e outras viroses. E de acordo com a imprensa, os casos de dengue aqui da RMC podem ser até cinco vezes maior do que se acredita, porque muita gente simplesmente espera o mal-estar passar, sem procurar ajuda médica. Então, alguém me explique como é que pode a pessoa chegar ao hospital em uma área endêmica, apresentando um conjunto de sintomas suspeitos e o médico olhar para a cara do paciente e dizer: "ah, isso não tá com pinta de dengue, não", sem ao menos solicitar a sorologia. Quer dizer, se a pessoa teve dengue, nunca vai saber, ou de repente pode descobrir da pior maneira possível, contraindo a doença de novo e ficando sujeita a desenvolver uma das formas mais complicadas, como a hemorrágica e a visceral. E é bem capaz de ficar feito uma coió em casa, esperando passar, até que seja tarde demais.

Fiquei pensando nisso depois de ter lido um post da Bia Badaud, que copiei abaixo por não ser capaz de localizar nos arquivos dela.

Então, assim, a gente é leigo e não tem informação suficiente para "levantar a suspeita". Mas se os médicos não levantam, como é feito o diagnóstico?

Ninguém me contou. Eu vi.

Estava de plantão, a médica clínica geral pede ajuda para avaliação e acesso venoso de uma paciente de 50 e poucos anos que havia chegado à emergência com dor abdominal, pressão baixa, extremidades arroxeadas (pra quem não sabe, eu sou cirurgiã).

Conversamos com a paciente.

Ela disse que estava com sede, e dor abdominal. Confirmada a pressão baixa.

Optou-se por acesso venoso periférico com dois 'jelcos', infusão rápida de soro, administração de oxigênio.

Estranhamente, ao exame o abdome estava molinho, não era compatível com qualquer quadro cirúrgico que justificasse aquele choque.

Ausculta pulmonar 'limpa'. Urina pouca, escura, mas sem 'grumos'.

Se é um choque séptico, veio de onde? Qual o foco de infecção?

História de doenças, medicações, cirurgias prévias, tudo 'inocente'.

Bom, vamos logo fazer logo a rotina de exames, para saber com o que estamos lidando e internação no CTI.

Nenhum sinal de sangramento, mas a pressão insiste em ficar baixa, e caiu o nível de consciência.

Começam a chegar os resultados dos exames.

Ué.

Se o choque fosse hemorrágico, por algum sangramento digestivo ainda não exteriorizado por exemplo, o hematócrito deveria estar baixo, mas está alto.

O que está consumindo as plaquetas, se não há história nenhuma de doença hematológica nem trauma?

Isso foi o que eu pensei.

Os clínicos que estejam lendo, já devem ter matado a charada, assim como fez imediatamente a clínica que estava do meu lado.

- Caramba, isso é dengue hemorrágico.

- Hein???

- É. Dor abdominal, hemoconcentração, leucopenia, trombocitopenia.

- Eu nunca tinha visto isso.

- Eu vi, recentemente. E evoluiu pra óbito.

- Ai.

Nisso chega o coagulograma. Que demorou porque a técnica não acreditou no resultado e estava re-checando.

- Está incoagulável. E com 15 mil plaquetas.

- ... Eram 30 mil inda ha pouco.......

- Já pedi concentrado de plaquetas.

- Vamos entubar antes que ela entre em insuficiência respiratória, a nova gasometria está com alguma retenção de CO2, já.

- Ok.

Passo o tubo, sem traumas, na primeira tentativa, sem dúvida nenhuma na traquéia, já que tinha visto perfeitamente as cordas vocais.

Antes mesmo que fosse insuflado o balonete, sai pelo interior do tubo uma quantidade inacreditável de sangue.

Os orifícios por onde foram colhidos os exames todos sangrando.

Aquelas 15 mil plaquetas provavelmente já haviam ido embora. Em minutos.

Não foi bonito de ver, não.

E olha que sou macaca velha. Minha sensação foi de estar remando uma canoinha no meio de um furação.

- Doutora, ela parou.

Daí foi mais de meia hora de manobras de ressuscitação, sem sucesso.

Nós sabíamos que, com certeza, o quadro se instalou dias antes, e ela só chegou a nós em um estágio avançado demais para ser revertido.

Mas eu também fiquei atônita, e, confesso, com medo, porque já tive dengue.

Nunca tinha visto uma coisa dessas, talvez porque antes eu lidava com outro tipo de público.

Por que contei isso assim, em detalhes?

Porque quem vê uma coisa dessas acontecendo entende que essa doença não é letal na maioria das vezes, e mesmo a dengue hemorrágica pode ser superada se bem conduzida nas suas manifestações iniciais, mas só se o tratamento for instituído no início do quadro.

O que matou esta mulher foram duas coisas:

1 - Falta de saneamento

2 - e falta de informação - ela não se tocou no início dos sintomas e adiou a ida ao hospital. "

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